O livro da nação: Os Sertões de Euclides da Cunha, um texto brasileiro fundamental e o lugar da memória no contexto nacional e transnacional.
Instituto de Estudos Latino Americanos
Resumo:
O livro Os Sertões se refere às questões de culturas fronteiriças e fronteiras culturais. Ao esclarecer as peculiaridades do sertão, o autor faz um esboço das diversas regiões: a Amazônia com seus índios e caboclos; o pampa, no sul do Brasil, com seus gaúchos. O curso dessas culturas regionais corre transversalmente ao desenvolvimento das identidades nacionais, sendo parte de sua constituição. Em primeiro plano, este projeto questionará a transposição para literatura de discursos não-literários; a representação histórica; a construção regional e nacional da identidade; o papel social dos intelectuais e sua relação com o poder; a heterogeneidade estrutural e sua relação com a heterogeneidade cultural; a discussão sobre o direito e a cidadania; a relação entre literatura e espaço público; a significação e recepção regional, nacional, transnacional e transcultural dessa e de outras obras-chaves da literatura latino-americana.
O livro e a (sua) nação:
Os Sertões, de Euclides da Cunha como texto fundador do Brasil nos contextos nacional e transnacional
Projeto de pesquisa de Berthold Zilly, Freie Universität Berlin
Por ocasião da sua publicação em 1902, Os Sertões: Campanha de Canudos, ensaio geográfico-histórico-poético do oficial, engenheiro e jornalista Euclides da Cunha causou uma sensação. Desde então o livro, apesar da sua leitura nada fácil, é percebido em todas as áreas do conhecimento, independentemente das opções ideológicas e muito além do círculo dos leitores cultos, como obra canônica, instauradora da identidade sertaneja e nacional. Como raras vezes acontece na história dos povos, Os Sertões é desde o dia da sua publicação um livro central e fundamental da nação brasileira, sua fonte de inspiração, quintessência, base legitimadora, interpretação, norte, memento, confissão, auto-acusação, para não dizer revelação: a “Bíblia da nacionalidade”.
Para Hegel, em sua Estética, cada nação tende a expressar-se em uma epopéia, em geral uma narrativa de guerras fundadoras, e não é por acaso que Os Sertões tem traços épicos, o que lhe valeu a denominação de “epopéia nacional”. Borges, em um dos seus ensaios, El libro, interpreta a identificação de algumas nações com um livro ou com um autor central como uma espécie de secularização do livro sagrado de certas religiões: “Luego decae la creencia en un libro sagrado y es reemplazada por otras creencias. Por aquella, por ejemplo, de que cada país está representado por un libro. Recordemos que los musulmanes denominan a los israelitas, la gente del libro; recordemos aquella frase de Heinrich Heine sobre aquella nación cuya patria era un libro: la Biblia, los judíos. Tenemos entonces un nuevo concepto, el de que cada país tiene que ser representado por un libro; en todo caso, por un autor que puede serlo de muchos libros.”
Enquanto grande narrativa por excelência das suas origens e da sua formação, monumento e sinal da sua grandeza, das suas mazelas e das suas perspectivas futuras, Os Sertões pode ser compreendido como lugar de memória (Pierre Nora) e como livro fundador (Doris Sommer). Nenhum outro autor brasileiro capitalizou uma admiração tão profunda, emotiva e mesmo reverencial por parte da crítica literária especializada, dos especialistas em geografia, história e ciências sociais, e dos leitores em geral, inclusive fora do Brasil. A influência no romance com temática interiorana, de Guimarães Rosa por exemplo, assim como no pensamento social brasileiro praticamente não pode ser sobreestimada, tendo produzido também efeitos sobre a política de desenvolvimento nos âmbitos regional e nacional.
Para essa influência contribui decerto também o fato de que Euclides da Cunha se insere conscientemente em grandes tradições literárias, testadas nos seus efeitos sobre os leitores: nas tradições da Bíblia, da retórica e historiografia greco-romana, da literatura francesa do século XIX, sobretudo Victor Hugo, dos relatos dos viajantes e da prosa científica desde o início do período colonial até o positivismo e o evolucionismo.
Pois Euclides não pretende apenas fazer uma crônica e análise da guerra civil de Canudos no sertão da Bahia (1896-97), mas visa algo mais fundamental. Convida o leitor a uma viagem ao “coração das trevas” no sentido de Joseph Conrad, à exploração do hinterland desconhecido e bárbaro, permitindo-lhe vivenciar o choque da cultura rural tradicional de matriz religiosa das camadas inferiores com a cultura laica das elites urbanas, que se considera ponta de lança da civilização mundial. Perante essas duas tendências antagônicas, o atraso, a barbárie, interiorana, rural e popular de um lado e a civilização das cidades e do litoral, moderna, cosmopolita, racional de outro lado, o autor assume uma atitude ambígua: como ideólogo do progresso condena o sertanejo por ser um bruto, ignorante, fanático, racialmente inferior, mas como homem sensível, poeta e patriota o admira, o heroifica, o transfigura em personagem emblemático não só do interior, mas da nação.
Pode-se deduzir dessa ambigüidade que as mencionadas tendências dicotômicas deveriam, segundo o autor, ser conjugadas, concialiadas e aproveitadas pelo Estado para formar uma Nação moderna junto com o seu imaginário que precisa do elemento pré-moderno. Pois, se a parte mais nacional do Brasil, a terra e a gente do sertão, é pouco civilizada, a civilização é pouco nacional, sendo antes européia, estrangeira. A nação que está se formando precisa dos dois elementos, do próprio e do alheio. Por isso, já o precursor intelectual da dicotomia conceitual que é a matriz, que está por trás do pensamento euclidiano e da sua época, Domingo Faustino Sarmiento, intitulou a sua obra-chave “Civilización y barbárie” (e não: “Civilización o barbarie”, como às vezes se cita erroneamente), assinalando que não se trata só de uma alternativa, mas também e principalmente de duas tendências a serem preservadas e combinadas. A barbárie é imprescindível para a construção de uma civilização inconfundivelmente nacional, pelo menos no plano simbólico, mas também na realidade, pois representa valores autênticos e um profundo conhecimento da natureza sudamericana.
Mas o elemento bárbaro, selvagem, pré-civilizado não serve apenas para definir as dimensões inconfundivelmente nacionais ou latino-americanas, mas serve também para criticar, enriquecer e corrigir o processo civilizatório de um modo geral, constituindo um patrimônio da Humanidade. Não é por acaso que as correntes que criticam a Civilização, iluministas, românticas, exotistas, vanguardistas, sempre se apoiaram e se inspiraram em culturas pré-modernas, “selvagens”, bárbaras, associadas algumas vezes com mitos edênicos.
Em Os Sertões, o Estado nacional é apresentado mais como processo e missão do que como realidade acabada, sendo o governo, o exército e a opinião pública até fustigados, devido ao seu engajamento unilateral − alienado, como se diria mais tarde − contra a humilde população desconhecida da própria pátria. O livro começa e termina com um mea-culpa dos letrados e civilizados, incluindo o próprio autor, uma atitude que pode ser entendida como crítica, mais intuitiva e moral do que analítica, ao imperialismo da época que tem como testa de ferro a intelectualidade e as elites dos países latino-americanos.
Interligando a história natural com a história social, Euclides da Cunha narra uma espécie de gênesis, a origem do hinterland e da sua população, mais ainda, as origens da terra e nação brasileiras. Estuda os traços distintivos, as deficiências e potenciais de desenvolvimento do sertão e de todo o Brasil, bem como a posição do país num mundo cada vez mais homogeneizado por aquilo que mais tarde se chamaria de globalização, e ao mesmo tempo profundamente cindido pelo darwinismo social, defendido e ao mesmo tempo criticado pelo próprio autor. Com isso, coloca-se também a questão do caráter, da promesse de bonheur e dos riscos bárbaros inerentes à própria civilização, sobretudo na perspectiva de um país politicamente independente, porém de fato em muitos aspectos dependente e atrasado, neocolonial para fora e colonizador para dentro, que na opinião das suas elites tinha vocação para um grande futuro. Na medida em que o autor narra, em parte sob o signo da mencionada dicotomia “civilização e barbárie”, a história das formações e deformações político-sociais e culturais, que evoluem à deriva em direções opostas e não obstante se condicionam reciprocamente, surgem perguntas pelas formas, causas, a (in)evitabilidade de cisões regionais e sociais, desses “dois Brasis”, como se formularia mais tarde, para não dizer de rupturas catastróficas do processo civilizatório no âmbito de uma modernidade fragmentada.
Concebido desde o início, pelo autor, como parte da literatura universal, a obra foi traduzida desde a década de 1930 para numerosos idiomas e acolhida sempre positivamente pela crítica literária, bem como pela historiografia e sociologia no exterior. Com freqüência foi até saudada com entusiasmo, e mais recentemente foi diversas vezes interpretada como uma das primeiras críticas da modernização e homogeneização eurocêntrica cega, autoritária e violenta. As muitas guerras internacionais e civis dos últimos cem anos, resultantes de conflitos econômicos, religiosos ou étnicos, e as correspondentes “teorias”, como por exemplo a do “choque de civilizações” (Samuel Huntington) projetam nova luz sobre a obra de Euclides, interpretável talvez mais adequadamente como visão de contradições no processo civilizatório que prefiguram a “Dialética do Esclarecimento” (Horkheimer e Adorno). Pois Euclides não considera a barbárie simplesmente como o força antagônica, mas como elemento da própria Civilização.
A dimensão continental de Os Sertões, que transcende o Brasil, é reforçada pelo fato do autor esboçar também outras regiões do Brasil, como a Amazônia com as suas populações indígenas e caboclas, e o pampa do Brasil meridional com os seus gaúchos, com vistas a tornar mais claras as especificidades do sertão. A comparação suscita questionamentos pelas culturas fronteiriças e pelas fronteiras culturais, pois essas regiões, por assim dizer internacionais, se posicionam transversalmente às identidades nacionais, concorrendo, não obstante, na sua constituição. Esse método comparativo serve também para mostrar afinidades e diferenças entre o sertanejo, por um lado, e o escudeiro da Idade Média, ou o chouan contra-revolucionário durante a Revolução Francesa, ou seitas cristãs desde a Antigüidade até o século XIX, por outro lado: Pois conforme o evolucionismo, a História mundial é una, no entanto diferenciada por velocidades diferentes do progresso. Assim, o sertão estaria atrasado, ficando num estádio evolutivo bem anterior ao das nações européias, de modo que no Brasil haveria a simultaneidade de culturas não simultâneas.
Partindo de questões atinentes ao gênero literário, à formação do cânone, à literarização e até ficcionalização de discursos não-literários, à retórica, à poética e à encenação da realidade, serão examinados problemas da formação da identidade regional e nacional, do papel social dos intelectuais e da sua relação com o poder, da heterogeneidade estrutural e da sua relação com a heterogeneidade cultural, da construção do Estado de Direito e da cidadania, e do papel da literatura na esfera pública, na escola, na imprensa e outras instituições.. É altamente revelador estudar nesse contexto as recepções regional, nacional, transnacional e transcultural dessa e de outras obras-chave da literatura latino-americana. Para deixar mais claros os traços distintivos de Os Sertões, vai ser útil examinar sobretudo, como tema colateral, o papel ideológico de uma obra-gêmea, do já mencionado ensaio romanceado Facundo, de Sarmiento, livro fundacional da Argentina, de 1845.
Para esta pesquisa, é de suma importância o diálogo com os estudos culturais, com a história e a sociologia sobre as identidades étnicas e regionais, sobre os preconceitos de cor, a mestiçagem e a formação da nação. O tema imediato do livro, a guerra civil de Canudos, conflito inicialmente regional, que depois foi ocupando as manchetes dos jornais nacionais e internacionais, entrou pelas mãos de Euclides na memória cultural da nação, um processo cuja compreensão é facilitada pelos trabalhos teóricos de Aleida Assmann. Freqüentemente contraditórias no plano da lógica científica e contudo plausíveis no plano estético, as reflexões e configurações euclidianas sobre as identidades do hinterland e da nação, feitas na esteira da reportagem sobre a guerra, constituem módulos de decisiva importância para a construção da memória coletiva e da consciência nacional brasileira.
Observe-se que o autor ocupou uma posição social e moral tipicamente híbrida: por um lado, era um intelectual desprovido de recursos, que assumiu uma posição crítica diante das elites, simpatizando com o povo humilde; por outro, logrou conquistar respeitabilidade social e uma posição influente graças ao seu “capital cultural” (Bourdieu), sendo cooptado pelas elites criticadas, sobretudo depois da sua morte, à semelhança do que ocorreria décadas mais tarde até com um protagonista do seu livro, Antônio Conselheiro, o inimigo admirado das elites e líder do movimento sócio-religioso dos vaqueiros e camponeses de Canudos.
É elucidativo estudar a relação e o significado do autor e de sua obra para as instituições culturais e científicas da época e da posteridade. Pois para um homem do seu gênio e de suas inclinações intelectuais e científicas, mas sem recursos financeiros, havia pouco espaço para formar-se e exercer uma atividade profissional, a não ser no exército, que depois da guerra do Paraguai havia começado a tornar-se um foco do pensamento moderno, científico, positivista e republicano. Outra instituição importante, com a qual Euclides colaborava desde o seu tempo de cadete na escola militar, era a imprensa. Além disso, sentia vocação para o magistério, assumindo em seus escritos atitudes de preceptor do seu público e até da nação. Por outro lado sempre teve problemas com as instituições a que pertencia ou nas quais queria ingressar: a família, o exército, a República, a imprensa, a Escola Politécnica de São Paulo (que não o aceitou como professor), a escola em geral, com as repartições públicas de São Paulo (onde se empregava como engenheiro civil), com o Itamaraty (como cartógrafo e demarcador de fronteiras), embora fosse eficiente e bem-sucedido em todas as suas atividades. Em virtude de sua retidão, sua intransigência, seu senso de justiça e sua suscetibilidade, talvez até de aspereza, Euclides estava sempre incomodando, também na imprensa. Pensava de maneira muito rigorosa e o que escrevia não era suficientemente fácil para o jornalismo diário. Considerou ligeiramente a possibilidade de tornar-se deputado, e no fim da sua vida conseguiu uma colocação como professor secundário.
Mas esse espírito inquieto, neto do Iluminismo e filho tanto do Romantismo como do Positivismo, via sua verdadeira vocação na literatura de temática realista e prática, no ensaísmo literariamente exigente. Desde a publicação de Os Sertões em 1902, não havia mais dúvida alguma quanto à vocação literária do autor. Mas o enorme reconhecimento social e cultural não o poupou de preocupações materiais. Parece que nas instâncias superiores se hesitava em conceder-lhe um contrato de trabalho fixo, uma colocação adequada aos seus talentos.
Por outro lado duas importantes instituições o acolheram depois do êxito Os Sertões, como sócio, imediatamente, sem reserva, continuando a estudar e divulgar a sua obra até hoje em dia: a Academia Brasileira de Letras, instituição republicana fundada justamente no ano da guerra de Canudos, e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de longa tradição desde a Regência e o segundo Império. Essa dupla homenagem é índice da múltipla recepção que o livro oferece: nele se encontram três sistemas de pesquisa e de representação da realidade, três sistemas de produção intelectual: as ciências naturais e exatas, que operam com mensurações e cálculos; as ciências históricas e sociais que se baseiam antes na hermenêutica, generalização e abstração, e a beletrística, a ficção e poesia que partem da empatia, intuição e fantasia. Assim Os Sertões reúne em si o que Wolf Lepenies chama as "três culturas", o que por um lado continuava uma velha tradição ensaística, principalmente na França e Inglaterra, mas que por outro lado correspondia à situação institucional de um país que ainda não possuía todas as faculdades e onde a divisão do trabalho intelectual estava relativamente pouco avançado. Acresce-se a isso que Euclides como pesquisador viajante, condição que de certo modo era a sua em Canudos, tinha, por modelo, eruditos que dominavam essas “três culturas”, como p.e. A. von Humboldt, Martius, Saint-Hilaire, os quais ele cita várias vezes.
Apesar de Euclides exercer uma crítica áspera (mas também ambivalente), ao exército e à imprensa, essas duas instituições o cobrem de honras, até hoje em dia. O impacto da sua obra sobre a literatura, as ciências sociais e humanas, as artes, os currículos das escolas e universidades, não pode ser sobreestimado, sendo o livro hoje um monumento quase sagrado, o que pode eventualmente dificultar o acesso. Pouco depois da sua morte dramática e romanesca, iniciou-se um verdadeiro culto institucionalizado à sua obra e personalidade, que tem como centros, além do Rio de Janeiro e de São Paulo, São José do Rio Pardo, onde nasceu como escritor, e Cantagalo, onde nasceu como pessoa, sendo ele sepultado, conseqüentemente, nas duas cidades. No Museu Nacional foi homenageado em pé de igualdade com os maiores cientistas, pois foi instalada uma Sala Euclides da Cunha, ao lado da Sala Alexander von Humboldt (salas que no entanto hoje não existem mais).
Euclides prestou uma contribuição expressiva à constituição da consciência histórica brasileira. A repressão do movimento religioso camponês no árido interior da Bahia não foi o único abalo – nem mesmo o mais grave, mais tumultuoso ou com o maior número de vítimas – sofrido pelo jovem país que conquistou a independência em 1822 e o regime republicano em 1889. Se a guerra de Canudos está muito mais presente na memória coletiva e na vida intelectual brasileira do que outras crises comparáveis – levantes, guerras, guerras civis, também mais presente do que a repressão sangrenta do movimento messiânico de Contestado, no sul do Brasil, nos anos de 1910 a 1916 – então isso se deve com certeza ao livro de Euclides. Canudos jamais foi esquecida. De tal forma que o nome desse campo de ruínas passou, nos anos oitenta, para outro lugarejo vizinho (a antiga Cocorobó). Quem diz Canudos, diz quase sempre Euclides da Cunha, e assim não causa espanto que uma pequena cidade a cerca de 70 quilômetros ao sul, a velha Cumbe, tenha sido rebatizada, já nos anos trinta, como Euclides da Cunha.
Para a maioria dos historiadores e cientistas sociais o entrelaçamento Canudos-Euclides foi e é tão grande que estes, mesmo não seguindo muitas de suas interpretações datadas, apoiaram-se, até há poucas décadas, em seu livro como fonte principal. Eles mal retrocederam para trás de Euclides, e até pouco tempo ninguém ousou publicar novamente uma exposição tão ampla e exigente. O autor d'Os sertões parecia, descontando-se algumas análises específicas, ter esgotado o tema. Isso poderia surpreender à primeira vista. Quando se lêem os relatos contemporâneos sobre a campanha, relativamente numerosos, verifica-se que todos os fatos essenciais narrados por Euclides também se encontram naquelas outras fontes, em parte até mesmo de maneira mais exata e completa. Exagerando um pouco: se não houvesse Os Sertões, nós, mesmo assim, saberíamos tudo o que sabemos hoje sobre Canudos. Só que, abstraindo-se dos especialistas, quase ninguém iria interessar-se pelo assunto. Não são os fatos e nem mesmo muitas das reflexões que fazem a singularidade do livro, mas sim a sua apresentação literária, retórica, teatral. Se nenhum historiador ou cientista social pode passar ao largo dos Sertões, isto significa um triunfo da literatura. Hoje, naturalmente, existe uma historiografia não-euclidiana sobre Canudos, sempre em diálogo, porém, com Os Sertões.
As questões da tradução e traduzibilidade, que faz parte da recepção internacional dessa “epopéia nacional”, inclusive da tradução intersemiótica, no teatro e cinema, provocam reflexões sobre a sua vigência e atualidade do livro, que transcende épocas e nações em meio a um mundo parcialmente desnacionalizado, bem como reflexões sobre a relação entre culturas locais tradicionais, por um lado, e uma cultura mundial, por outro lado.
Todas essas questões podem ser muito bem analisadas com base em Os Sertões, lançando-se mão também de outros textos do mesmo autor. Com sua referência direta à história extra-literária, com seu caráter multiforme, polissêmico e híbrido em termos de gênero literário e registros estilísticos, bem com sua intensa recepção centenária na literatura, do pensamento social e do imaginário nacional e transnacional, esse texto se apresenta por assim dizer como laboratório culturológico, que permite dissecar tendências, contradições, heterogeneidades, não-simultaneidades, antinomias da modernidade em geral. Tanto no plano referencial quanto no plano estético-simbólico o livro faz desfilar diante de nós uma pletora de recursos expressivos, temas, problemas, hipóteses, tentativas de solução e aporias, todas elas dedicadas ao tema mais abrangente, que poderíamos formular na seguinte pergunta: quais são as condições internas e externas, os traços distintivos, os fenômenos colaterais, as conseqüências, as perspectivas de um Estado nacional moderno e civilizado, diante da necessidade de integrar populações “atrasadas” e marginalizadas, isto é, em geral não-brancas, mestiças, caracterizadas por crenças “irracionais” ou “fundamentalistas”, diante da inserção do país no mercado e na política internacionais? Na era dos failed states na África e na Ásia, percebe-se com maior clareza a importância do monopólio estatal da violência, do Estado de direito, da boa governança, da eficiente e justa administração pública, do respeito e do diálogo com as populações marginalizadas, de uma consciência nacional imbuída de valores sociais e cosmopolitas, assegurando um certo nível de vida material e cultural, ou seja condições de vida humanamente dignas e civilizadas.