"Ser imigrante é ter o passado no presente, e se reinventar a todo momento”
Nascida na cidade de São Paulo, Bela Feldman-Bianco vem de uma família de imigrantes judeus ucranianos de Kiev e poloneses de um shtetl perto de Varsóvia . Cresceu no Bom Retiro, um bairro de imigrantes.
Sua formação humanista se deu no âmbito de sua família e das instituições de judeus de esquerda do bairro onde cresceu,em especial no Clube Infanto-Juvenil .LL.Peretz que funcionava na Casa do Povo. A presença marcante da migração, representada pela profusão de símbolos do passado anterior à migração expostos na casa de sua avó paterna, influenciou a construção de seu olhar de antropóloga. Essa influência é evidente na pesquisa que realizou sobre a Saudade e que a levou a decifrar os significados de tempos e espaços do passado rural na terra natal na vida cotidiana de migrantes portugueses em uma cidade industrial americana
Bela Feldman-Bianco se graduou em 1966, em Ciências Sociais, pela Universidade de São Paulo (USP),durante a ditadura civil- militar brasileira que teve início com o Golpe Militar de 1964. A promulgação do Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, - considerado o momento mais duro do regime -, deu margem à uma conjuntura que era, segundo ela, muito difícil para os que lutavam contra o regime ditatorial. Essa foi uma das razões que a levaram a viver nosEstados Unidos da América.
Ao chegar em New York, vislumbrou a possibilidade de dar continuidade aos seus estudos. Após muita reflexão, decidiu realizarmestrado e doutorado em Antropologia na Universidade de Columbia (1970-1980). Posteriormente, fez um pós-doutorado em História, na Universidade de Yale(1984-1985), ambas nos EUA
Com extensa atuação profissional entre o Brasil, Estados Unidos e Portugal, Bela Feldman-Bianco iniciou sua trajetória acadêmica em 1980 na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, logo após a defesa de sua tese de doutorado.. Embora tenha se aposentado em 2010, continua ativa como professora colaboradora, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e também ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, ambos na UNICAMP.
Foi uma das fundadoras e a primeira diretora (1996-2013) do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI/IFCH/Unicamp),onde continua a atuar como diretora adjunta. Logo após a criação do CEMI, liderou a concepção do projeto integrado Identidades: Reconfigurações de Cultura e Política – Estudos das Migrações Transnacionais de Pessoas, Símbolos e Capitais, com o qual se tornou a primeira antropóloga a receber financiamento na I Edição do Programa de Apoio aos Centros de Excelência (PRONEX/ Ministério de Ciência e Tecnologia, 1996-1984) No contexto desse projeto, recebeu em 2001, o Prêmio Zeferino Vaz de Excelência Acadêmica do IFCH/Unicamp
Sua incursão na área de migrações transnacionais se iniciou quando ocupou a Cátedra de Estudos Portugueses da University of Massachusetts Dartmouth, EUA, (1986 - 1991). Naquele período, criou o Portuguese Oral History Project através de oficinas com estudantes e, ao mesmo tempo, desenvolveu extensa pesquisa etnográfica. entre os portugueses do sudeste de Massachusetts. Além de publicar uma série de artigos sobre a pesquisa em andamento, realizou a premiada etnografia visual Saudade, 57 (Watertown: Documentary Educational Resources, 1991). No contexto dessa pesquisa, também se tornou investigadora associada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (1989-2001. Em 1998, voltou. à UMass Dartmouth para ocupar a cátedra Hélio e Amelia Pedrosa/ Fundação Luso-Americana (1998.) Foi também pesquisadora-visitantena Brown (1998-1999), e na Universidade de New Hampshire, (2001) onde finalizou a edição do dossiê temático “Colonialism as a Continuing Project” por ela organizado e publicadona revista Identities: Global Studies In Culture and Power, no.4., Vol.4, 2001Mais recentemente foi pesquisadora associada do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (2019-2024), junto ao projeto The Color of Labor: The Racialized Lives of Migrants. No âmbito desse projeto, organizou com C.Bastos e M. Moniz a coletânea Migration, Mill Work and Portuguese Communities in New England, a sair pela Editora da UMass Darmouth ,
Suas pesquisas e inúmeras publicações focalizam questões relacionadas à cultura e ao poder, com ênfase em identidades, migrações transnacionais, colonialismo/ pós-colonialismo e globalização em perspectiva comparativa. Entre outras distinções, recebeu o Prêmio Roquete Pinto por suas contribuições à antropologia brasileira (ABA, 2014),o Prêmio ANPOCS de Excelência Acadêmica Gilberto Velho (2017), tendo também ocupado a Cátedra UNESCO/Memorial da América Latina em 2015. Atualmente, é pesquisadora sênior do CNPq, com o projeto integrado Desloca(Migra)mentos.
Bela Feldman-Bianco também ocupou importantes cargos e posições de destaque no Brasil e no exterior. Foi representante da Área de Antropologia e Arqueologia da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (2005-2007); Membro do Comitê Acadêmico de Ciências Sociais do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (2008-2011); Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (2011-2012); Co-coordenadora do Grupo de Trabalho Migración, Cultura y Política ( Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, CLACSO ,2010-2013) e do World Anthropological Council, da Associação Americana de Antropologia (2012-2015). Foi ainda .coordenadora do Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia (2013-2019); Membro do Comitê Acadêmico da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (2019-2020) e do do Comitê de Avaliação de projetos da Wenner Gren Foundation (2020-2022),entre outros. Desde 2015, representa a Sociedade Brasileira de Progresso à Ciência (SBPC) no Conselho Nacional de Imigração (Ministério da Justiça e Segurança Pública e, é membro eleito do Comitê Diretor do World Council of Anthropological Societies (WCAA), onde representa a Associação Brasileira de Antropologia (2022-2025), com assento no Conselho da World Anthropological Union (WAU). Faz também parte de conselhos de revistas publicadas no Brasil e exterior.
Aqui você terá acesso a uma vista geral dos conceitos trabalhados pela pesquisadora durante a sua trajetória acadêmica.
Bela Feldman em sua apresentação durante a palestra "Cidades imigrantes, cidades cosmopolitas, pensar o futuro" trabalha com o conceito de cosmopolitismo imigrante. Para tanto se alinha com os autores como Schiller, e define assim, cosmopolitismo imigrante como "uma abertura para o mundo, que inclui, simultaneamente, o reconhecimento de diferenças étnicas, raciais, de gênero, nacionais e religiosas entre outras. Não se trata de uma celebração de culturas ou decidir entre ser universalista ou provinciano".
E por isso, segundo ela: "pode se referir às manifestações coletivas de imigrantes e refugiados em prol de projetos comuns, como por exemplo no que concerne o direito à cidade e aos direitos fundamentais". Cita a marcha dos imigrantes, iniciada em 2006, na cidade de São Paulo, como exemplo desse cosmopolitismo imigrante conglomerando diversas nacionalidades, com uma pauta em defesa do direito de viver nas cidades onde habitam. Conforme Feldman é a partir das cidades que as pessoas se manifestam, se mobilizam em defesa de seus direitos.
Fonte
Feldman-Bianco, B. (2020). "Cidades imigrantes, cidades cosmopolita | Pensar o Futuro". < Disponível em: https://youtu.be/8L-HnL1i3O8 >. Acesso em 08.09.2020.
O conceito de diáspora nos estudos de Feldman aparece como uma configuração social construída a partir dos movimentos migratórios que permite abordar as migrações contemporâneas ancoradas a uma base capitalista global a partir de seu lado histórico, por exemplo, o tráfico transcontinental de pessoas escravizadas da África em conjunto com a invenção da racialização e do trabalho migrante. A prática de olhar a migração entre o Brasil e Portugal permite a conexão de questões de uma diáspora com questões de império e pós-colonialismo. Nesse sentido, para Feldman, a incorporação da diáspora portuguesa na configuração de uma nova nação pós-colonial "global" funciona a partir da substituição das ex-colônias na "re-imaginação" do antigo espaço imperial português.
A partir de uma visão transnacional da migração, o conceito de diáspora marca um campo de estudo que propõe espaços para a constante configuração e reconfiguração dos conceitos de nação ligados ao território e ao sangue. Em um sentido metafórico, a ideia de diáspora descreve uma experiência de pertencimento e identificação através das fronteiras nacionais.
Fontes
Feldman-Bianco, B. (2010). Brasileiros em Lisboa, Portugueses em São Paulo: Construções do Mesmo e do Outro, 07/2010, "Nações e Diásporas: Estudos comparativos entre Brasil e Portugal", Capítulo, ed. 1, Editora da Unicamp, pp. 6, pp.26-31.
Feldman-Bianco, B. (2010). Nações e Diásporas: Estudos comparativos entre Brasil e Portugal, 07/2010, Texto Integral, ed. 1, Editora da Unicamp, pp. 296, pp.1-296.
Feldman-Bianco, B. (2007). Empire, Postcoloniality and Diásporas, 05/2007, Hispanic Research Journal, Vol. 8, Fac. 3, pp.279-290, London, REINO UNIDO.
Feldman-Bianco, B. (1999). A Família na Diáspora e a Diáspora na Família, 01/1999, "Diversidades culturais na América Latina", Capítulo, ed. 1, EDUSP/Expressão e Cultura, Vol. 9, pp. 21, pp.253-273.
Feldman-Bianco, B. (1994). Antropologia e cinema: questões de linguagem, 12/1994, "Antropologia e cinema: questões de linguagem", Capítulo, Interior Produções, pp. 6, pp.55-60.
Feldman entende que a experiência da imigração é frequentemente marcada pela construção de uma identidade fragmentada entre o país de origem (no caso de seus estudos, Portugal) e o país de destino. Este processo ela conceitua como “fragmentação do eu”.
Ela relata, por exemplo, como aqueles que emigraram ainda crianças são fortemente marcados pelo confronto com a superposição de valores culturais antagônicos e pela fragmentação do eu, dividido “entre culturas”.
As narrativas das mulheres, enraizadas na sua condição feminina, são perpassadas por memórias das proibições e repressões que lhes foram impostas pelos seus pais e que estão imbricadas na exacerbação de tradições familiares transmitidas através de gerações relativas à construção diferencial de gênero. Em sua pesquisa, observa que há diferentes estratégias para a reconstrução deste “eu fragmentado” enquanto algumas optam pela identidade americana, outras - principalmente aquelas que se tornaram intermediárias culturais ou intérpretes entre culturas - tendem a viver vidas duplas e paralelas: uma no âmbito doméstico e comunitário inserida no mundo português e outra enquanto membros da sociedade americana.
Fontes
Feldman-Bianco, B. (2000). Immigration, Cultural Contests and Reconfigurations of Identity: the case of female cultural brokers, 01/2000, Journal of Latin American Anthropology (Cessou em 2006. Cont. ISSN 1935-4932 Journal of Latin American and Caribbean anthropology), Vol. 5, Fac. 2, pp.126-141, Arlington, EUA.
No artigo “A saudade da terra na América: memória cultural e experiências de mulheres portuguesas na intersecção de Culturas” (1993), Feldman critica que os estudos etnográficos realizados até aquele momento sobre as mulheres portugueses imigrantes nos EUA tinham enfoques reducionistas, pois as categorizavam enquanto classe, a priori como “operárias”, ou enquanto grupo étnico, simplesmente como “portuguesas”. Eram excluídos das análises os significados que os próprios imigrantes atribuem às suas experiências migratórias e as suas vivências entre culturas, bem como processos de fragmentação e reconstrução de identidades implicados pela migração.
Feldman também critica que até então as análises dos papéis de gênero ocupados por estas mulheres migrantes, se davam sob um olhar impositor de paradigmas feministas (brancos) norte-americanos, denunciando de forma simplista a dupla jornada de trabalho feminino e as relações de poder entre os sexos, sem considerar processos complexos de reinvenção dos papéis de gênero provocados pela especificidade da experiência da migração e o encontro de valores culturais conflitantes.
Em contrapartida a esta falha, Feldman propõe em sua pesquisa de campo em New Bedford (EUA) um enfoque alternativo: entender vidas migrantes a partir da interação entre experiências históricas, condições estruturais e ideologias de seus países de origem e recepção. Ou seja, como essas mulheres (re) constroem suas identidades ao "nível do eu" diante de mudanças dramáticas, determinadas pela imigração e o confronto com valores culturais muitas vezes conflitantes no que se refere a gênero, classe, etnicidade, geração e idade.
Portanto, para Feldman é necessário considerar como, a partir da “diferença cultural” imposta pela migração, mulheres e homens imigrantes reinterpretam e simbolizam o seu passado na terra natal e no novo contexto, para então captar as complexidades que envolvem a (re)construção de classe, etnicidade, e gênero.
Logo, ainda que ela não use propriamente o conceito “interseccionalidade” tal como é hoje empregado no campo dos Estudos de Gênero, é possível identificar como esta mesma ideia é fortemente presente em sua etnografia. Feldman entende que a identidade da mulher imigrante se dá na articulação de uma diversidade de processos de construção e reconstrução das categorias gênero, etnia, classe e geração, e reivindica que esta articulação seja analisada ainda em meio à especificidade da “intersecção de culturas”. Sua crítica revela sua preocupação em entender os processos culturais também como um eixo que influencia a construção destas categorias e identidades. Em sua abordagem interseccional, Feldman mostra-se mais interessada em entender o complexo processo de categorização/formação de identidades do que nas categorias per se.
Tradicionalmente, muitas abordagens interseccionais contemporâneas seguem priorizando a intersecção de categorias clássicas como “gênero”, “classe”, “etnia/raça”. No caso de estudos sobre migração, o trabalho de Feldman revela a importância de se pensar junto a estas categorias também seus processos de construção no contexto da “intersecção de culturas“.
Fontes
Feldman-Bianco, B. (2009). Multiple Layers of time and Space: The Construction of Class, Ethnicity and Nationalism among Portuguese immigrants, 01/2009, "Building Ethnic Communities: Portuguese American Communities along the Eastern Seabord", Capítulo, ed. 1, University of Massachusetts - Center for Portuguese Studies, pp. 44, pp.49-92.
Feldman-Bianco, B. (1993). A saudade da terra na América: memória cultural e experiências de mulheres portuguesas na intersecção de Culturas, 09/1993, Encontros de Antropologia (Universidade Federal do Paraná e SESC da Esquina), Vol. S/N, Curitiba-PR, PR, Brasil.
Cidadania Global
Bela Feldman recorre também ao conceito de cidadania global, de modo a reforçar o direito do imigrante à uma cidadania universal, de fronteiras livres, que permita a esses indivíduos o direito à livre circulação, seja onde estiverem, desde o nível local ao global.
Fonte
Feldman-Bianco, B. (2020). "Cidades imigrantes, cidades cosmopolita | Pensar o Futuro". < Disponível em: https://youtu.be/8L-HnL1i3O8 >. Acesso em 08.09.2020.
Nacionalismo Português
O nacionalismo português fundamenta-se na supremacia da raça lusa, demandando a manutenção exclusiva da cultura, nacionalidade e língua portuguesa. No entanto, a lei de nacionalidade portuguesa de 1985 transforma essa concepção. Baseada nos “direitos às raízes” e, portanto, em laços de “sangue” e ascendência, a lei facilitou a incorporação da diáspora na remodelagem de Portugal como uma nação pós-colonial desterritorializada.
Fonte
Feldman-Bianco, B. (1993). Múltiplas Camadas de Tempo e Espaço: a construção de classe. etnicidade e nacionalismo entre imigrantes portugueses, 09/1993, Revista Crítica de Ciências Sociais, Vol. S/N, Coimbra, Portugal.
Transnacionalismo
Aqui o transnacionalismo vem definido como um processo social, onde os migrantes operam em campos sociais que ultrapassam fronteiras geográficas, políticas e culturais. Dessa forma, considera-se os portugueses provenientes dos Açores, Portugal continental, Cabo Verde e Madeira, que chegaram a Nova Inglaterra, como transmigrantes. Através de uma análise histórica Bela Feldman também notou que desde de a década de 70, ocorria uma espécie de intensificação de antigas, assim como a emergência de novas formas de conexão e identificação com Portugal.
Fontes
Feldman-Bianco, B.; Abram, S. (2018). Anthropology and ethnography: the transnational perspective on migration and beyond, 02/2018, Etnográfica (Online), Vol. 22, Fac. 1, pp.195-215, Lisboa, Portugal.
Feldman-Bianco, B. (2011). Una conversación sobre transformación de la sociedad, migración transnacional y trayectorias de vida, 04/2011, Crítica y Emancipación, Vol. 5, pp.9-42, Buenos Aires, Argentina.
Identidade Transnacional Portuguesa (Portugalidade Na Diáspora)
Refere-se à manutenção e renovação da identidade e nacionalismo lusófonos. Ao reconstruir práticas sociais associadas ao seu passado agrícola, por ex. hortas, o fazer do vinho, costura, bordados e festas folclóricas, os transmigrantes portugueses encontraram uma maneira de enfrentar a monotonia do trabalho industrial, ao mesmo tempo que reconstruíam ou ajudavam a renovar a portugalidade nos bairros étnicos em New Bedford. A concessão de direitos de dupla nacionalidade e cidadania pelo Estado pós-colonial aos seus emigrantes reconheceu e estimulou a renovação de uma identidade transnacional portuguesa.
Fontes
Feldman-Bianco, B. (2009). A Taste of Portugal: Transmigração, Políticas Culturais e Mercantilização da Saudade em tempos neoliberais, 03/2009, Ler História, Vol. 1, pp.105-119, Lisboa, Portugal.
Feldman-Bianco, B (1993). The construction of immigrant identity: the case of the Portuguese of Southeastern Massachusetts (co-autoria de Donna Huse), 09/1993, People and Culture in Southeastern Massachusetts - vol V, Vol. S/N, EUA.
Nacionalismo Territorializado
O nacionalismo territorializado refere-se à construção dos sujeitos legítimos de direitos, ao mesmo tempo em que promove políticas de incentivo à naturalização (à "americanização") no país. Dessa maneira, imigrantes e descendentes foram confrontados com a necessidade, por exemplo, de escolher entre continuarem portugueses ou se tornarem cidadãos americanos e se assimilarem.
Americanização
O termo “americanização” é utilizado no texto “Reinventando a localidade: Globalização heterogênea, escala da cidade e a incorporação desigual de migrantes transnacionais” (Feldman-Bianco, 2009) para designar a maneira como os Estados Unidos influenciavam política e culturalmente os imigrantes transnacionais a substituir seus costumes pelos da cultura norte-americana (à assimilação), sendo estimulados a naturalizar-se como estadunidenses (à naturalização). Muitos transmigrantes portugueses deixaram-se influenciar pelas “campanhas de americanização” (1930) com o objetivo de evitar discriminação, especialmente o estigma de “Black Portuguese”. Ao mesmo tempo, a americanização proporcionava possibilidades de mobilidade política, social e econômica nos Estados Unidos. Desse modo, Bela Feldman afirma que muitos luso-americanos “passaram” para a cultura americana, ainda que retendo, em muitos casos, a língua e as tradições portuguesas.
Fontes
Feldman-Bianco, B. (2000). Globalização, antigos imaginários e reconfigurações de identidade: percursos de uma pesquisa comparativa. Caderno CRH, 13(33).
Antropologia Como Práxis
Feldman afirma que a maioria da população brasileira parece desconhecer o significado de antropologia. Por isso, ela enfatiza que para promover, visibilizar e popularizar essa disciplina faz-se imprescindível priorizar a interação entre educação, ciência e tecnologia, assim como a divulgação científica. A autora define antropologia como uma práxis, ou seja, “ um modo de produzir conhecimento fundamentado em algumas operações epistemológicas que fornecem a base de suas diversas formas de trabalho teórico, orientando suas técnicas de pesquisa e suas coordenadas empíricas.
Após sua pesquisa de campo em New Bedford, Feldman constatou que muitas mulheres que migraram ainda jovens e crianças – por aprenderem o idioma e se inserirem nas instituições dos novos países, especialmente por meio da escola – aprendem a traduzir códigos culturais diversos e tornam-se mediadoras, em um primeiro momento no âmbito familiar, amenizando conflitos entre seus pais e irmãos menores.
Se suas existências são marcadas desde cedo pela "fragmentação do eu", no transcorrer de suas trajetórias de vida muitas dessas mediadoras culturais percebem que a possibilidade de (re)construção de suas identidades pessoais está justamente na junção de suas experiências portuguesa e americana. Ao mesmo tempo, essas jovens mulheres se veem também forçadas a contestar as expectativas de seus pais, maridos e patrões, vinculadas à construção tradicional de gênero feminino. Não por acaso aquelas que conseguem continuar os seus estudos e deixar o trabalho fabril, escolhem profissões que implicam a continuidade de suas experiências de intermediação cultural entre seus pais e as instituições americanas. Assim, ao tornarem-se assistentes sociais, professoras, bibliotecárias e intérpretes, além de mudar de posição de classe, essas mulheres (e em menor extensão, homens) passam a desempenhar a intermediação entre a população imigrante e a sociedade americana.
Nesse contexto, estas mulheres mediadoras passam a suplementar sua nostalgia com uma nova interpretação de sua experiência na América avaliada em termos de seu crescimento individual. Ao mesmo tempo em que o seu bilinguismo e biculturalismo transformam-se na base de seus sonhos de libertação, de seu feminismo surge um novo vocabulário que enfatiza crescimento e força individual, independência, competência autodeterminação, consciência dos direitos da mulher, trazendo à tona uma outra dimensão do processo complexo de viver entre culturas.
Fontes
Feldman-Bianco, B. [Ano?]. Imigracao, Confrontos Culturais e (re) construções de identidade feminina: o caso das intermediárias culturais, Científico Internacional, Actas do Congresso Internacional, Vol. 1, pp.759-769, Lisboa, Portugal.
Feldman-Bianco, B. (2000). Immigration, Cultural Contests and Reconfigurations of Identity: the case of female cultural brokers, 01/2000, Journal of Latin American Anthropology (Cessou em 2006. Cont. ISSN 1935-4932 Journal of Latin American and Caribbean anthropology), Vol. 5, Fac. 2, pp.126-141, Arlington, EUA.
Bela Feldman define saudade – famosa palavra da língua portuguesa que refere-se ao sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas – como uma construção social, que se dá tanto a nível de nação, quanto em nível individual do sujeito. Seu interesse em estudar a construção social da “saudade” se deu a partir de sua pesquisa de campo com a comunidade imigrante portuguesa em New Bedford, ao observar como múltiplas camadas de tempo e espaço se entrecruzam naquele cenário. Ela relata:
“Por exemplo, nos enclaves étnicos da cidade, as hortas e os jardins portugueses (símbolos da vida outrora vivida nas pequenas cidades e aldeias de Portugal) contrastam flagrantemente com as grandes estruturas fabris que, na virada do século, estavam na vanguarda da industrialização americana. Ainda que a vida de muitos seja marcada pelos turnos de trabalho fabril, durante o verão, tal qual no fim da época da colheita em Portugal, imigrantes portugueses continuam a ritualizar as suas memórias da terra natal numa sucessão de festas folclóricas regionais. Sobrepondo-se às inúmeras festas regionais, as celebrações do "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas" (re)inventam a era das descobertas portuguesas no cotidiano americano. ” (Feldman & Huse, 1995, p. 96)
Essa contínua incorporação e superposição do passado no presente talvez seja característica de enclaves imigrantes em qualquer parte do mundo. Aparentemente, as representações simbólicas e as práticas sociais associadas a Portugal, parecendo reproduzir fotografias de tempos e espaços já vividos, podem ser interpretadas como mera nostalgia. No entanto, estas múltiplas camadas de tempo e espaço superpondo significados e valores culturais que estão muitas vezes em conflito são representações dinâmicas da forma pela qual migrantes percebem e confrontam as mudanças verificadas nas suas condições de existência na intersecção de culturas.
Essas representações de múltiplas camadas de tempo e espaço são constitutivas da saudade - uma construção cultural originada no século XVI, que define a identidade (peregrina) portuguesa. De um lado, como parte constitutiva do "eu" ou da pessoa, a saudade tende a ser caracterizada como "a experiência desenraizada localizada entre as memórias do passado e o desejo do futuro" ou, simplesmente, no dizer de um jovem imigrante, como "as memórias que tocam a alma". Essas memórias estão intrinsecamente associadas aos tempos e espaços vividos anteriormente à emigração, ou seja, à "saudade da terra". Por outro lado, como parte constitutiva da memória histórica coletiva de Portugal, ou da "invenção da tradição" (Hobsbawm, 1986), a saudade é narrada como "a essência do caráter nacional português" e, portanto, como sinônimo da comunidade política imaginada.
Ainda cabe destacar que, para Feldman, a nível de sujeito o sentimento de saudade é construído na intersecção com gênero, classe, geração e etnicidade. Em sua pesquisa, ela entende que nem todas as mulheres imigrantes apresentam suas memórias e saudades da mesma forma. Os maiores marcadores de diferença na construção deste sentimento estão relacionados às desigualdades de classe e geracionais.
Fontes
Feldman-Bianco, B. (2010). A taste of Portugal: Transmigração, políticas culturais e a mercantização da saudade em tempos neo-liberais, 10/2010, "Inovação Cultural, Patrimônio e Educação", Capítulo, ed. 1, Massangana, Vol. 1, pp. 12, pp.128-139.
Feldman-Bianco, B. (2009). A Taste of Portugal: Transmigração, Políticas Culturais e Mercantilização da Saudade em tempos neoliberais, 03/2009, Ler História, Vol. 1, pp.105-119, Lisboa, PORTUGAL.
Feldman-Bianco, B. (2006). Marcas da Saudade, 06/2006, Revista Etnográfica, Vol. 1, pp.1-3, Lisboa, PORTUGAL.
Feldman-Bianco, B., & Huse, D. (1995). Entre a saudade da terra e a América: mulheres imigrantes. Estudos Feministas, 96-121.
Feldman-Bianco, B. (1993). A saudade da terra na América: memória cultural e experiências de mulheres portuguesas na intersecção de Culturas, 09/1993, Encontros de Antropologia (Universidade Federal do Paraná e SESC da Esquina), Vol. S/N, Curitiba-PR, PR, BRASIL.
Feldman-Bianco, B. (1992). Saudade, Imigração e a Construção de uma Nação Desterritorializada, 01/1992, Revista Brasileira de Estudos de População (Impresso), Vol. 09, pp.35-49, Campinas-SP, SP, BRASIL.
Feldman-Bianco, B. "Saudade" - 58 Minutos, 1991, direção de Bela Feldman-Bianco, Michael Majoros e Peter 0'Neill. <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tNbqoZYmsoA>. Acessado por último em 08.09.2020